O Pergamon Museum é um dos mais impressionantes museus do mundo. Construído entre 1910 e 1930 para albergar o Altar de Zeus da antiga cidade grega de Pérgamo, este museu nacional é também morada de um grande tesouro da humanidade: a magnífica Porta de Ishtar, nada menos do que a principal porta de entrada na Neo Babilónia. De ambas as vezes em que o visitei senti-me viajar no tempo, uma sensação tão forte que me fez querer descobrir toda a história que este deslumbrante monumento arquitectónico carrega. Tudo começou há 2600 anos…
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Babilónia, a primeira grande cidade do mundo antigo
A monumental Porta de Ishtar que hoje vemos em Berlim localizava-se na principal passagem para a Babilónia, uma civilização que perdurou durante muitos séculos em território hoje pertencente ao Iraque. Quando pensamos no mundo antigo, as cidades que nos vêm à mente são Roma e Atenas, mas Babilónia, na Mesopotâmia, já era uma cidade antiga e venerada quando aquelas ainda começavam a estabelecer-se. Babilónia foi uma das três civilizações da Mesopotâmia, sucedendo à Assíria, que por sua vez sucedeu à Suméria, o berço da primeira civilização e da primeira forma de escrita, entre os rios Tigre e Eufrates (3000 a 2000 a.C.).
Apesar de a data da sua fundação não ser conhecida com precisão, os historiadores concordam que Babilónia já era uma cidade-estado independente no século XVIII a.C.. Desde então, passar-se-iam mais de mil anos até a cidade voltar a brilhar com o grande projecto de renovação conduzido pelo rei Nebuchadnezzar II, o maior monarca do Império da Neo-Babilónia (626 a 539 a.C). Capitalizando habilmente o legado de poder deixado pelo seu pai, que libertara Babilónia do domínio sírio, quando assumiu o trono em 605 a.C, Nebuchadnezzar II empreendeu obras colossais em 13 das cidades que governava, mas Babilónia, a mais famosa, seria a que mais viria a beneficiar deste esforço de regeneração. O grande monarca reforçou a estrutura defensiva da cidade com novas fortificações, muros, um grande fosso e canais. A água, que era um recurso precioso para a cidade, era assegurada por um sistema de irrigação sofisticado, nunca antes visto no mundo. Apesar de até à data ainda não se terem encontrado provas da sua existência, da cidade fariam parte os luxuriantes Jardins Suspensos da Babilónia, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo elencadas pelo poeta grego Antíprato de Síson. Em 600 a.C., Babilónia era tão impressionante que era amplamente considerada como o centro do mundo, fervilhando de vida com mais de 200.000 habitantes. Numa coisa os historiadores estão de acordo: Babilónia foi a primeira grande cidade do mundo antigo.
Um video feito a partir da reconstrução em 3D feita pela Byzantium 1200 para uma exposição do Royal Ontario Museum permite termos uma ideia de como seria a Babilónia de Nebuchadnezzar II:
A Porta de Ishtar e a Via Processional da Neo Babilónia
Nebuchadnezzar II dedicou-se ao restauro da Babilónia com o claro de intuito de deslumbrar quem a contemplasse e tinha especial orgulho na Porta de Ishtar (nome da deusa do amor, da fertilidade e da guerra), a maior das oito entradas que davam acesso à Neo Babilónia, e na via processional a que esta dava acesso. Pelo deslumbramento que eu senti ao vê-la, que acredito ser comum a milhares de visitantes que todos os anos acorrem ao Museu de Pérgamo, acredito que tenha conseguido esse objectivo para a posteridade. Além das imponentes muralhas que guardavam a cidade, a grande via processional era colossal: com 21 metros de largura, estendia-se do complexo de templos, passando pelo coração da cidade, até à Porta de Ishtar a norte, ao longo de quase um quilómetro. As paredes elevavam-se a mais de 15 metros nos dois lados e estavam decoradas com dezenas de imagens de leões, dragões, touros e flores pintadas a ouro.
O museu não poderia naturalmente expor todo o monumento recuperado pelos arqueólogos, mas o que hoje podemos ver não deixa de ser impressionante: a Porta de Ishtar foi reconstruída em 1930 usando os tijolos esmaltados a azul originais mas, devido às restrições da dimensão do museu, ela não está nem completa nem no seu tamanho original. O que vemos no museu é parte frontal mais pequena da entrada dupla original. Os escombros da segunda porta foram recuperados mas continuam guardados em armazém.
Ao lado da Porta de Ishtar, o Museu de Pérgamo expôr a reconstrução da fachada da sala do trono do rei Nebuchadnezzar, decorada com palmeiras em cores vivas, um símbolo de fertilidade e vida longa. Podemos ainda admirar a dedicatória do próprio rei inscrita ao lado da porta, em que este descreve as melhorias com que beneficiou a Babilónia e os objectivos ambiciosos que idealizou e concretizou com esta fortaleza.
Quando se passa a Porta de Ishtar pode-se caminhar pela reconstruída Via Processional e ainda observar uma maquete da mesma, que dá uma melhor ideia da beleza e grandiosidade desta jóia da arquitectura antiga.
Sob o reinado de Nebuchadnezzar II, Babilónia tornou-se numa cidade não apenas magnífica de contemplar mas também no centro das inovações artísticas e intelectuais. Abundavam escolas e templos, a literatura, as ciências e a matemática e o artesanato floresciam num ambiente de tolerância.
Este grande rei conseguiu concretizar a sua visão e, com ela, contribuir para o avanço da civilização. Morreu pacificamente na cidade que construiu, após um reinado de 43 anos. Mas Babilónia não sobreviveria nem 25 anos após a sua partida, já que cairia nas mãos dos persas em 539 a.C.. Dois séculos mais tarde, outro grande líder, Alexandre o Grande, conquistou a cidade e empreendeu esforços para a recuperar, mas Babilónia não mais voltaria a viver o esplendor mítico que teve durante o reinado de Nebuchadnezzar II.
Uma odisseia arqueológica que passou pelo Porto
Se hoje se pode ver a Porta de Ishtar em Berlim, tal deve-se ao trabalho dos arqueólogos alemães Walter Andraes e Robert Koldewey. Estes dois prestigiados exploradores da Sociedade Oriental Alemã partiram para as ruínas da Babilónia em busca de vestígios da mítica Torre de Babel e dos Jardins Suspensos da Babilónia nos últimos anos do século XIX. Entre os seus achados, ricos em arquitectura e arte, mas em muito mau estado, encontravam-se os fragmentos da Porta de Ishtar e dos seus baixos-relevos com figuras de animais.
As escavações arqueológicas tiveram início em 1899 e continuaram durante 15 anos durante os quais foram descobertas a Porta de Ishtar, a Via Processional, o templos, o palácio do rei Nebuchadnezzar II e um zigurate (um templo em forma de torre) que alguns identificam como a lendária Torre de Babel. Os arqueólogos já tinham recolhido milhares de fragmentos da Porta de Ishtar quando tiveram que abandonar as escavações devido ao eclodir a I Guerra Mundial. Mas as 900 caixas com os fragmentos das ruínas não ficaram lá: foram transportadas para a Universidade do Porto! Em 1926, Andrae conseguiu persuadir a Universidade a enviá-las para Berlim. Pergunto-me o que teria acontecido se tivessem ficado cá – certamente não teríamos construído um museu como o de Pérgamo para expor estes achados, nem tão pouco o investimento de tempo e recursos humanos necessário para reconstruí-los. Andrae fez isso mesmo: nomeado director do Museu do Próximo Oriente (uma secção do Museu de Pérgamo), decidiu reconstruir a Porta de Ishtar e Via Processional na íntegra. Foi um trabalho hercúleo, de muita paciência e minúcia.
Numa vitrine junto às grandes Portas de Ishtar está um caixote de madeira com réplicas dos fragmentos descobertos nas escavações da Babilónia – eram nada mais do que pequenas pedras, alguns dos fragmentos do tamanho de uma noz, muito dificilmente identificáveis e cuja montagem foi um quebra-cabeças que parecia não ter fim à vista.
Os técnicos encarregues pela reconstrução tinham que testar centenas de fragmentos até encontrarem aqueles que encaixavam com as partes das cabeças dos animais em relevo para poderem restaurar as figuras a partir dos fragmentos dos tijolos melhor preservados. Só mesmo quando uma peça específica faltava é que era substituída por uma réplica. Em 1930 as reconstruções parciais destes monumentos seriam finalmente inauguradas no Museu de Pérgamo.
Preservar e valorizar o património da humanidade
Ao preparar este post descobri que as ruínas da Babilónia, perto de Bagdad, reabriram recentemente ao público, mas com uma réplica das Portas de Ishtar. As originais estão no Museu de Pérgamo, o mesmo se passando com o Altar de Pérgamo e o Portão do Mercado de Miletus, cujas ruínas estão em território hoje pertencente à Turquia. Isto faz-me pensar. Quando visitei o Museu do Cairo vi, logo à entrada, uma réplica da Pedra de Roseta. Tive mais tarde o privilégio de ver a original, mas essa está em Londres, no Museu Britânico. O busto de Nefertiti está na Ilha dos Museus de Berlim, no Altes Museum.
É incontestável que, há pouco mais de um século, as expedições das grandes potências europeias apropriaram-se de muitos tesouros da humanidade, deixando apenas ruínas nos seus locais de origem. No caso das Portas de Ishtar, o envio dos fragmentos reunidos nas escavações para Berlim foi conseguido após Andreas ter chegado a acordo com o Império Otomano sobre a divisão dos achados da Babilónia. Além de supervisionar a reconstrução das peças complementando as figuras originais com tijolos de esmalte modernos fabricados em três fábricas próximas de Berlim, o arqueólogo Andrae coordenou o envio de figuras de animais reconstruídas para vários museus no mundo, em cidades como Vienna, Paris, Copenhaga, Gutemburgo, Dresden, Munique e Chicago.
O Egipto é dos que mais tem lutado pela devolução do seu património. É uma reivindicação legítima. Mas pergunto-me o que teria acontecido se muitos desses tesouros não tivessem sido recuperados e protegidos por expedições científicas que os souberam valorizar. Hoje, milhões de pessoas podem vê-los nos mais prestigiados museus do mundo. Infelizmente muitos dos locais originais destes legados não apresentam condições de segurança nem para eles, nem para as suas populações. No caso concreto da Babilónia, as ruínas sofreram danos irreparáveis após a invasão do Iraque em 2003, tendo o local ancestral sido usado para instalar uma base militar norte-americana e depois polaca.
Felizmente têm sido desenvolvido esforços para conservar o local arqueológico da Babilónia, nomeadamente através do trabalho conjunto do World Monuments Fund com com o Gabinete Estatal das Antiguidades e Património do Iraque. A missão arqueológica que permitiu reconstruir parte da grandiosa Neo Babilónia tem, à luz destes acontecimentos, ainda maior valor. Visitar o Museu de Pérgamo é conviver com as maiores civilizações da antiguidade, da Antiga Grécia ao Próximo Oriente.
Nota:
Para escrever post recorri a vários artigos de referência, cuja lista segue abaixo para os que quiserem saber mais:
The Great Gate of Ishtar: a door to wonder, BBC
Lost cities #1: Babylon – how war almost erased ‘mankind’s greatest heritage site’
Beautiful Babylon, Jewel of the ancient world, National Geographic
Babylonia, History.com Editors
“The Ishtar Gate and Neo-Babylonian art and architecture,”, Smarthistory
Ishtar Gate, Ancient History Encyclopedia
Babylon, Ancient History Encyclopedia
Inside the 30-Year Quest for Babylon’s Ishtar Gate. National Geographic History Magazin
Mesopotamian Gods and Kings, Mesopotaniangods.com
Museu de Pérgamo – Informações práticas
O Museu do Pérgamo é o mais visitado dos Museus Nacionais de Berlim e faz parte da Ilha dos Museus, ela própria Património Mundial da UNESCO. O edifício está dividido em três museus: O Museu do Antigo Próximo Oriente, o Museu das Antiguidades Clássicas o o Museu de Arte Islâmica. Conte com algum tempo para as filas – quer na compra dos bilhetes, quer na entrada. O museu tem bengaleiro grátis.
O bilhete dá direito a um audio-guia com opção de várias línguas que transmite informações muito interessantes sobre as exposições, numa gravação bem acompanhadas por músicas inspiradas nas tradições musicais dos lugares que evocam.
Localização: Bodestraße 0178 Berlin – Actualmente o museu encontra-se em obras ( para restauro do Altar de Pérgamo) e a morada está a fazer-se por uma entrada diferente da habitual, que pode consultar aqui.
Como chegar (fique ainda a conhecer os transportes públicos de Berlim no artigo que publiquei aqui).
Metro: U-Bahn U6 (Friedrichstraße) | Metro de Superfície: S-Bahn S1, S2, S25, S26 (Friedrichstraße); S3, S5, S7, S9 (Hackescher Markt)
Eléctrico: Tram M1, 12 (Am Kupfergraben); M4, M5, M6 (Hackescher Markt)
Autocarro: Bus TXL (Staatsoper); 100, 200 (Lustgarten); 147 (Friedrichstraße)
Horário de Funcionamento: Seg a Qua e Sex a Dom – 10-18H; Qui 10-20H
Preço dos bilhetes: 19 € inteiro, 9,5€ com desconto – consultar condições aqui.
O passe de museus para 3 dias custa 29€. A entrada é gratuira para estudantes e crianças até aos 18 anos.