Há monumentos que preferíamos não ter. Dentro da Fortaleza de Valença, sobre uma esguia coluna granítica, a figura da Deusa alada da vitória Nike eleva uma coroa de louros em homenagem aos Combatentes da I Guerra Mundial. Este obelisco, erguido em frente ao Paiol de Marte, evoca o sacrifício colectivo dos homens de Valença, mortos ou mutilados neste confronto que teve um impacto penoso na comunidade. Mas este foi apenas o último dos sacrifícios bélicos que Valença sofreu. Cidade-fortaleza, esta terra traz nas veias o sangue dos seus antepassados, com uma história que merece ser conhecida: a de Valença, a cidade feita de valentia.
Por estar situada na fronteira e ser o primeiro ponte de entrada no noroeste da Península Ibérica, Valença foi dos locais que mais sofreu com as investidas de potências estrangeiras, assumindo o desígnio de ser uma cidade-fortaleza. Fez das tripas coração, mas sobreviveu e tornou-se mais forte, orgulhosa. É uma história com quase mil anos e estes são os seus episódios mais marcantes:
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De povoado a núcleo amuralhado no Portugal medieval
Uma fortaleza é um espaço que defende, que protege, mas também um espaço que contém. A fronteira noroeste portuguesa é, desde a fundação de Portugal, em Valença, onde se encontra separada de Espanha pelo rio Minho. Mas podia não ser: o nosso fundador e grande conquistador, D. Afonso Henriques, chegou a ter pretensões de a fixar na ria de Vigo, ideia que abandonou apenas em 1169. É que, nesse ano, sofreu o desaire de não ter conseguido tomar Badajoz, devido ao ataque surpresa das forças leonesas que se aliaram aos mouros almóadas que a ocupavam. Foi a única acção de conquista da qual não saiu vitorioso, porque ficou ferido quando se retirava e foi aprisionado. A sua libertação, dois meses depois, teve um custo alto: a devolução ao rei de Leão de 25 cidades, vilas e fortalezas anteriormente por ele conquistadas e três toneladas de ouro…
Mas a sede de alargar o território não morreu com o rei fundador. O seu primogénito, o rei D. Sancho, herdou dele o ímpeto conquistador. Com vista a expandir o território, tomou cidade de Tui em 1186. Com esta conquista, a localidade de Contrasta (assim se chamava Valença na altura) sai valorizada, já que não só garantia a vigilância do rio Minho, como da estrada romana entre Braga e Lugo, via de peregrinos a Santiago de Compostela. Contrasta é coutada e entregue pelo rei a Paio Carramondo, que o encarrega de a povoar e organizar, fortalecendo o poder régio no Alto Minho. Foi uma das medidas para consolidar a linha de fronteira, demarcando-a com núcleos urbanos amuralhados.
Já amuralhada, Contrasta é atacada e ocupada pelos leoneses em 1212, sofrendo uma grande destruição, que exigiu a sua reconstrução. Cinco anos depois, D. Afonso II eleva Contrasta à categoria de vila. Nesta altura, as suas muralhas terão sido concluídas e o povo foi obrigado a viver dentro delas, separando-se dos seus bens. O povoado e a estrutura militar defensiva fundem-se num só espaço. Por ordem do rei, dá-se uma profunda reforma do sistema militar da vila, fazendo com que as muralhas passassem a abarcar toda a povoação existente. Foi esse compromisso permanente de defesa da nação que levou a que D. Afonso III lhe concedesse, em 1262, um novo nome, prestigiante e evocativo da sua valentia e valores guerreiros: Valença.
A Praça-Forte do Alto Minho nas Guerras da Independência
Avançamos no tempo até ao século XVII. Este foi o século em que a nossa independência foi reconquistada, após termos sidos ocupados por Espanha.
A data que ainda celebramos para marcar a restauração da independência é a do golpe palaciano destinado a expulsar o domínio espanhol, a 1 de Dezembro de 1640. Nesse dia, um grupo de conspiradores nobres e letrados aclamou o Duque de Bragança como rei, com o título de D. João IV. Foi um momento decisivo, mas seria apenas o começo de uma longa luta de 28 anos, até nos libertarmos do poder e da tirania estrangeira personificada pelos Filipes de Espanha.
Todas as forças militares portugueses foram reordenadas para enfrentar a repressão que se antecipava. Com vista a recuperar Portugal, os espanhóis organizaram dois exércitos – um na Extremadura e outro na Galiza. Valença, como outras vilas e cidades mais expostas situadas nas entradas naturais do país, preparou-se com entricheiramentos, fossos e barreiras, além de armazéns e quartéis. Com um grande esforço e muitos sacrifícios, Valença torna-se numa Praça-Forte. Significou isto que, no Alto Minho, todas as principais localidades, incluindo Caminha, foram fortificadas para impedir a aproximação a esta Praça-Forte, que detinha a missão estratégica de defesa do reino. As guerras da independência colocaram-na sob fogo da artilharia espanhola, mas Valença só seria tomada pelos atacantes espanhóis uma única vez durante este período de quase três décadas.
Com as muralhas fragilizadas e sem capacidade para enfrentar o poder da artilharia, em constante evolução, foram necessárias grandes obras para recuperar o património destruído, que só ficariam concluídas em 1700. Impunha-se a necessidade de fazer erguer uma fortificação abaluartada, capaz de defender com eficiência contra o fogo potente e profundo da artilharia.
No despontar do século XVIII, Valença encontra-se dotada com uma das mais impressionantes e monumentais fortificações portuguesas. Com cerca de 5 km de perímetro, é um exemplo mundial da arquitetura militar abaluartada. O seu complexo sistema defensivo é formado por 10 baluartes, além de casamatas, paióis, portas e outras estruturas. Mais de 300 anos depois da sua construção, completamente reabitada, ergue-se ainda, imponente, de portas abertas a todos. Foi com esta exacta fortaleza que hoje vemos que Valença enfrentou mais dois grandes conflitos: as Invasões Napoleónicas e as Guerra Civil Portuguesa.
Das Invasões Francesas à Guerra Civil
O dia 9 de Abril de 1809 ficaria para a História como um dos mais negros vividos pelos valencianos. Um contingente de 10.000 (leram bem: dez mil) soldados franceses comandados pelo general Soult, por ordem de Napoleão Bonaparte, cerca a fortaleza de Valença. Podemos apenas tentar imaginar o pânico e a sensação de impotência e desespero de todos quantos viram e ouviram aquele mar de soldados armados aproximar-se. Uma invasão que poderia ter tido consequências bem piores se não fora pela sábia e corajosa decisão do governador de Valença:
O governador que teve a coragem de desobedecer à Inglaterra
Quando as tropas francesas chegaram a Valença, o regimento desta Praça-Forte estava no Porto. O marechal Arthur Wellesley, 1º Duque de Wellington, que comandava o exército britânico que estava em território português para combater as tropas napoleónicas, dá ordem aos valencianos para abandonarem a cidade, queimando tudo à sua partida. Era a política da terra queimada, destinada a não permitir que os franceses obtivessem proveitos desta invasão. Mas o governador de Valença, Custódio César de Faria, teve a coragem de lhe fazer frente, em nome de Valença. Após ter-se reunido com as autoridades locais, Faria decide entregar Valença aos franceses, capitulando. Era a única hipótese que tinham perante a força invasora, e a única solução que permitiu salvar Valença da completa destruição. Faria pagou pela sua decisão enfrentando dois anos na prisão e dois conselhos de guerra convocados pelos ingleses. Saiu ilibado desses julgamentos, mas foi tal a pressão de se ver assim humilhado e abandonado, que acabou por morrer de desgosto.
A capitulação de Valença deu-se a 10 de Abril de 1809. Seguiram-se sete dias de ocupação, marcados por escaramuças e mortes, roubo de outro, relíquias e víveres e muito sofrimento. Metade dos soldados franceses ficou em Valença e outra metade ocupou o Mosteiro de Ganfei, para depois o destruir. A 17 de Abril, os invasores deixam Valença, mas não sem antes fazerem explodir a fortificação na Portal do Sol e na cortina de S. Francisco, causando estragos de grande dimensão. Uma maquete que reconstitui esse momento pode ser vista no Núcleo Museológico de Valença.
A primeira infantaria do mundo, segundo Wellington
Wellington, o mesmo marechal britânico que condenou o governador de Valença por lhe ter desobedecido, soube reconhecer a bravura do regimento desta cidade. O Regimento de Infantaria nº de 21, que já existia desde 1657, recrutava nas vilas de Valença, Caminha, Valadares, Barcelos, Esposende, Famalicão, Rates, Melgaço, Castro Laboreiro e Vila do Conde. A capela do Bom Jesus do Bomfim, dentro da Fortaleza, exibe uma placa evocativa em que se recordam as batalhas em que este regimento combateu: Bussaco, Fuentes de Oñoro, Badajoz, Salamanca, Victoria, Pirenéus, Nivelle, Orthez e Toulouse. A lista que não é exaustiva, encontrando-se uma lista mais completa neste link. Por considerar heróica a acção deste regimento, Wellington não só a classificou como a primeira infantaria do mundo, como lhe dedicou uma bandeira especial com os seguintes versos de Luís de Camões a letras de ouro:
“E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo rei, se de tal gente”.
Ainda Valença recuperava desta curta e mortífera invasão francesa, despontava já a Guerra Civil Portuguesa, a disputa entre liberais e absolutistas. Mais uma vez, Valença foi Praça-Forte, desta vez para defender o liberalismo, em 1828. Sitiada por forças realistas, resistiu com todas as forças durante nove longos dias. Acabou por ter que se render aos realistas, que a dominaram durante dois anos, até ser reconquistada pelas forças liberais, com o apoio do almirante inglês Charles Napier. Só na segunda metade do século XIX é que Valença pôde baixar as armas para se reerguer, em tempo de paz.
Do vazio deixado pela Grande Guerra a um presente feito de futuro
A partir de Janeiro de 1917, as tropas do Corpo Expedicionário Português começaram a partir para França, para combaterem os alemães na I Guerra Mundial. Até Outubro, saíam das terras de norte a sul do país grupos de homens com destino a Lisboa, onde depois embarcavam para França. Foram quase 60 mil homens e morreram mais de 6300.
Em Valença não foi diferente:
“Naquela manhã de 1917, um grupo de homens saiu daqui para ir combater os alemães em França. Seria a última vez que as suas famílias e os amigos veriam. A maioria jamais regressaria às suas casas.”
Isilda Salvador, museóloga no Município de Valença, 2021.
Ouvi Isilda Salvador contar este episódio com o coração na voz e um olhar solene. Isilda é museóloga no Município de Valença, mas acima de tudo valenciana, e a forma como nos “conta” Valença toca as pessoas, mostrando o que custou em vidas e em memórias cada pedra da fortaleza desta cidade praça forte. A mim tocou-me especialmente. Eu, que sou vianense, e tantas vezes passei por Valença, não conhecia ainda o legado de coragem dos valencianos. Por isso lhes presto aqui esta homenagem.
Valença, bastião de defesa do território e dos valores universais, manteve a presença de militares na sua fortaleza até 1927, ano de saída do último batalhão do Exército Português.
Hoje, Valença personifica a união entre Portugal e Espanha, de forma muito concreta. Quase dez anos após a criação do projecto Unicidade – Eurocidade Valença-Tui, as duas cidades fronteiriças vêem-se como irmãs e trabalham em conjunto para criar um espaço singular, em que os habitantes de cada lado da fronteira possam viver a cidade vizinha como sua. São mais do que apenas boas intenções: um valenciano pode inscrever o seu filho numa escola do lado de lá e vice-versa, podendo portugueses e galegos aceder a vários espaços culturais e desportivos. É, a meu ver, um caso de cooperação internacional transfronteiriça louvável.
E a Fortaleza, sempre a Fortaleza. Esta estrutura belíssima e notavelmente reconstruída e recuperada merece ter todo o reconhecimento do mundo. Uniu-se, por isso a Almeida, Elvas e Marvão, Fortalezas Abaluartadas da Raia Luso-Espanhola, numa candidatura para que sejam reconhecidas como Património Mundial pela UNESCO.
Valença é também porta de entrada da Rota dos Castelos e Fortalezas do Alto Minho, contando com uma Estação do Tempo para partir à descoberta das fortificações de toda a região.
Mais do que património histórico, Valença faz praça forte no seu povo. Dá gosto entrar na fortaleza e ver como fervilha de vida, com o comércio local a animar as ruas, envoltas pelas grandes muralhas e pelos relvados de veludo verde que descem até ao rio Minho. Há que ir a Valença para viver todas as suas histórias.