Descobrindo a Região Vinícola do Douro… pela estrada
Uma dia ao Douro é uma experiência muitas vezes adiada pelos portugueses, mesmo pelos que vivem a Norte, talvez porque a sua imensidão o faz parecer distante.
Em 2016 tive a oportunidade de fazer uma visita às Quintas de Ervamoira e Bom Retiro, no Douro Superior e no Baixo Corgo, a convite da Casa Ramos Pinto. A visita foi guiada pela directora de Comunicação da Casa, Ana Filipa Correia e pelo enólogo João Mesquita, responsável pelo mercado nacional da marca. Foi um dia que me ficará na memória pela intensidade luminosa das paisagens e que agora partilho convosco.
À descoberta de Foz Côa
Partimos de manhã cedo do Porto e pouco mais de duas horas depois chegávamos a Muxagata, uma pequena povoação no concelho de Foz Côa. As visitas à quinta têm que ser marcadas com antecedência e é necessário um transfer de jipe para lá chegar. O ponto de encontro para o transfer é a Praça do Pelourinho de Muxagata, onde romãzeiras em fruto adornam o espaço marcado pelo delicado pelourinho manuelino do século XVI.
Esperava-nos Luís, guia da Quinta de Ervamoira e exímio condutor de um 4×4 que nos levaria à propriedade. A Ana Filipa avisou que nos deveríamos segurar bem, pois a viagem seria acidentada. Pelo caminho, conta-nos como toda a paisagem que nos rodeia esteve prestes a ser submergida pelo projecto da Barragem do Côa. Mais à frente, parámos para ver uma marca que assinala a altura a que a água teria chegado caso o empreendimento tivesse avançado.
“A partir de aqui estamos debaixo de água!”, graceja Ana Correia, dando-nos a real percepção da perda de que o Douro esteve tão perto. Após mais uma descida, ladeada de oliveiras e amendoeiras, a paisagem abre-se e vemos ao fundo a Quinta de Ervamoira. É o momento para parar e tirar fotografias. Inesperadamente vemos uma majestosa águia a sobrevoar habilmente as vinhas. O céu estava completamente azul e as folhas das videiras salpicadas de vermelho. A luz dourada e o silêncio completavam um cenário deslumbrante.
Na região de Foz Côa, sub-região do Douro Superior, a aridez do clima contrasta com as verdejantes encostas de videiras de Ervamoira. Em1974, José António Ramos Pinto Rosas adquiriu a propriedade nela ver a resposta à sua procura de um terreno pouco acidentado que permitisse a mecanização da viticultura, dada a escassez e o elevado custo da mão-de-obra no Douro.
A sua visão permitiu transformar este território numa quinta modelo na região do Douro. Com a ajuda do sobrinho, o enólogo João Nicolau de Almeida, José Rosas estudou e seleccionou as cinco melhores castas, de modo a produzir os vinhos da marca, tanto de mesa como do Porto, apenas com as que fossem apuradas como tais. Ervamoira viria a ser a primeira Quinta do Douro plantada ao alto por talhões, a cada um correspondendo uma casta diferente, ao contrário das tradicionais misturas de castas na mesma vinha.
Os bons resultados conseguidos com este método estiveram em risco de desaparecer com a construção da Barragem do Côa. A descoberta das gravuras do Vale do Côa acabaria, felizmente, por impedir a submersão da Quinta.
Xistosas e de baixa altitude (entre os 110 e os 340 metros), as terras de Ervamoira têm 150 hectares de vinha com uma média de 30 anos de idade, sendo as castas maioritariamente tintas (Touriga Nacional, Touriga Francesa, Tinta Roriz, Tinta Barroca, Tinta da Barca e Mistura).
Por sorte estava um dia esplêndido para visitar Ervamoira, mas era o último dia das vindimas, que tinham acabado mesmo nessa manhã. Entre os corredores de videiras surgiu a enóloga da Ramos Pinto Teresa Ameztoy, que nos confirma, com alguma nostalgia, que nessa manhã acabaram os trabalhos da apanha da uva. As poucas que ainda vemos nas videiras são “para os passarinhos”, graceja Teresa.
Aqui, nesta terra quente, a apanha da uva é feita mais cedo. Este ano, conta-nos Teresa, houve mulheres a apanhar uma tonelada de uvas por dia, cada uma. Pergunto-me como isso é possível. Mesmo Tereza ficou surpreendida: descreve-me com gestos a ferocidade com que as apanhadoras se fazem aos cachos de uva, parecendo competir umas com as outras. São sobretudo gentes destas terras que fazem a apanha e fazem-no com orgulho. Aliás, toda a equipa da Ramos Pinto transmite a sensação de orgulho de fazer parte desta história que é a do Douro.
Uma visita Ervamoira é também a oportunidade de degustar os vinhos da Ramos Pinto e de almoçar na esplanada do restaurante da Quinta, no coração da montanha. À nossa chegada fomos presenteados com um delicioso Porto tónico acompanhado por queijo, presunto, figos com amêndoa e pão de vinhais, produtos da região. E acreditem que saboreá-los nesta envolvente é uma experiência digna dos melhores gourmands.
Mas esta quinta tem outra faceta. Ervamoira fica em pleno centro do Parque Arqueológico do Côa, classificado pela UNESCO como Património da Humanidade. Há 31 anos, a descoberta de um sarcófago medieval deu origem à Estação Arqueológica da Quinta de Santa Maria de Ervamoira, situada perto da famosa Ribeira de Piscos. Após continuadas escavações, em 1995 foi decidida a musealização das ruínas e da casa velha da quinta. O Museu de Sítio de Ervamoira concentra em si muita da investigação produzida sobre o Vale do Côa.
Neste pequeno museu em xisto, a primeira sala dá a conhecer as características do sítio de Ervamoira e apresenta reproduções de gravuras encontradas na propriedade.
De seguida é explicado o processo de viticultura da Quinta e, por fim, chega-se à sala onde estão expostos os vestígios arqueológicos romanos e medievais encontrados na estação arqueológica de Ervamoira, além de vários painéis que com reproduções e fotografias de gravuras rupestres do Vale do Côa.
Por fim, paralelo à loja do museu, a Ramos Pinto apresenta alguns dos seus melhores vinhos históricos. Fiquei nomeadamente a saber que foi esta casa que fez o primeiro Porto Late Bottled Vintage em 1927, muito antes de os LBV começarem a ser introduzidos no mercado.
Passagem pela Quinta dos Bons Ares
Deixada Ervamoira, seguimos viagem e parámos na Quinta dos Bons Ares, onde pude assistir ao engarrafamento de um vinho que aprecio especialmente, o Duas Quintas. Ora este vinho resulta precisamente da junção das uvas da Quinta de Ervamoira, de clima quente e seco, com as da Quinta de Bons Ares, de terreno granítico, a maior altitude, com clima fresco e arejado. Aqui visitámos ainda a adega, em plena actividade de época de vindimas. A Ramos Pinto é a única empresa de Vinho do Porto a produzi-lo exclusivamente com as suas próprias uvas (ver artigo sobre a Ramos Pinto aqui) e isso torna o seu vinho especial pois, além da selecção criteriosa das melhores castas, a apanha da uva só é feita no momento ideal de maturação de cada casta, refinando o sabor e a qualidade do vinho.
Pelas vinhas em socalcos da Quinta do Bom Retiro
Mas a viagem ainda me reservava um último destino: a Quinta do Bom Retiro.
Na sub-região do Cima-Corgo, em Valença do Douro, Pinhão, esta é uma das mais antigas e típicas quintas da região, embelezada por jardins com plantas exóticas e uma piscina que se diz ser a mais antiga do Douro. Aqui as vinhas estão plantadas em socalcos, entre os 110 e os 400 metros de altitude e podem ter desde 10 a mais de 80 anos, sendo as castas exclusivamente tintas. Aqui a paisagem é completamente diferente da de Ervamoira, mas o acesso é igualmente difícil. Valeu-nos a exímia condução da Ana Correia, por caminhos em que a roda parecia querer sair da estrada!
Esta quinta recebe visitas a convite da Ramos Pinto, mas a casa trabalha também com uma empresa de animação turística, que acompanha os interessados em visitas marcadas pelas temática da enologia, com estadia no Bom Retiro.
O Bom Retiro tem no total 110 hectares e segundo João Mesquita a prioridade da Quinta para o próximo ano é aumentar a adega, construindo-se mais tanques. Os que vemos na imagem têm uma capacidade de 9 toneladas cada.
Na tradição de pioneirismo da Ramos Pinto, o Bom Retiro está a fazer experiências com ovelhas anãs, que funcionam como herbicidas naturais, além de usar cactos para a viticultura biodinâmica. Na varanda da quinta, João olha para a extensão de vinhas à nossa frente e suspira: “Depois da intensidade das vindimas, as vinhas vão agora hibernar”, mas naturalmente continuam a ser trabalhadas.
Chega o pôr do sol, é hora de regressar ao Porto. Pelo caminho passámos por São João da Pesqueira e vamos desbravando mais e mais Douro, montanhas, socalcos.
Uma imensidão de paisagem esplendidamente modificada pelo homem. E o rio dourado a serpentear entre as montanhas. Voltarei em breve!