Há um ano atrás, o grande poeta, romancista, tradutor e ensaísta Vasco Graça Moura deixou-nos. Porque tive a oportunidade e a felicidade de o conhecer e de com ele aprender, surpreendida pela sua vivacidade e generosidade, dedico-lhe esta modesta mas sentida e devida homenagem. Recordo aqui algumas das ideias que me transmitiu, para que continuem a fazer-nos pensar.
 

Vasco Graça Moura


Entrevista de Vera Dantas a Vasco Graça Moura

Partiu, este ano, prematuramente – como sempre prematuramente partem as figuras superiores que enriquecem o nosso mundo. Durante toda a sua vida, manteve acesa a defesa da herança cultural, tendo afirmado que “a integração europeia deveria começar por uma consciência cultural e por uma atitude cultural”, dos quais dependeria o seu êxito (Europe sans rivage, de 1998)
Enquanto preparava a minha tese de mestrado sobre política cultural europeia (que mais tarde seria publicada), iniciei um diálogo com Vasco Graça Moura sobre esta temática. Em Novembro de 2005, o escritor era deputado ao Parlamento Europeu (PE) e relator desta instituição para a cultura. Eis a entrevista a que então prontamente me respondeu:

Vera Dantas: Qual tem sido o
protagonista institucional, ao nível da UE, no que concerne ao desenvolvimento da acção cultural comunitária?
Vasco
Graça Moura: Penso que o protagonista tem sido a Comissão, embora com a cobertura formal do PE. Este criou, há muito tempo, linhas de financiamento para algumas organizações (por exemplo, a Orquestra Sinfónica da Juventude) que se têm vindo a impor e vão entrar numa fase mais complicada com o novo programa Cultura 2007-2013; aprovou programas quadro; mas, na realidade, o peso da execução prática é da Comissão e os critérios finais, embora com a cobertura dos comités de peritos, também.

V.D.: As instituições europeias cooperam bem entre si para uma promoção do sector cultural no território comunitário?
V.G.M.: Há no PE várias concepções que são defendidas. O que os programas aprovados traduzem é uma solução de compromisso. Um largo sector de deputados não está interessado em políticas de preservação do património (no sentido mais elástico do termo), mas em políticas que se traduzem em subsidiar a criação contemporânea. Talvez por isso dar mais votos…

V.D.: Embora a Comissão Europeia evite usar a expressão “política cultural”, existe ou não uma política cultural ao nível da UE?
V.G.M.: A expressão “política cultural” não é do agrado dos serviços da Comissão nem do Conselho. Talvez por força do art.º 151º, para evitar equívocos quanto à preservação da diversidade. Mas é de uma verdadeira política cultural que a Europa precisa no meu entender.

V.D.: Uma maior atenção ao sector cultural pode fortalecer o processo de integração da UE? Quais seriam as prioridades de acção nesse sentido?
V.G.M.: A grande prioridade é, a meu ver, proporcionar um conhecimento recíproco mais profundo dos cidadãos que integram a UE. Não sei nada da literatura da Letónia que não sabe nada da portuguesa ou da espanhola, que não sabe nada da húngara, e assim sucessivamente, pelo menos no que toca aos pequenos países. Por isso a mais valia dos programas europeus deveria ter a ver com a herança cultural comum, que todos partilham sem conhecerem bem a diversidade com que e em que a partilham.
V.D.:Na prática, quais são as “forças” que determinam a decisão pela aplicação ou não do princípio de subsiadiariedade em programas culturais?
V.G.M.:O princípio da subsidiariedade é invocado também de uma maneira quase obstrutiva para não se fazerem certas coisas a nível da UE. Em última análise, tanto quanto ao conteúdo dos programas, como quanto aos orçamentos, tudo acaba por depender do Conselho. E aí, também há países membros que não querem saber de políticas culturais comuns. O artº 151 é uma espécie de funil, de que às vezes se agarra a parte estreita, e outras, a parte larga.V.D.:No seu relatório sobre o programa Cultura 2007 defende que, perante a escassez dos recursos disponíveis, seria preferível que as políticas se centrassem “sob poucos objectivos muito claros e muito bem definidos”. Quais seriam esses objectivos e como se fundamentaria essa escolha?
V.G.M.: Mais valia, em minha opinião, recuperar a fórmula tripartida dos programas anteriores (Ariane, Rafael e Caleidoscópio), aperfeiçoando-a, em vez de se criar um grande saco à espera das sinergias e de pretensas inovações. Sugiro que leia o diálogo entre Jean Clair e Régis Debray no Figaro de hoje*, quanto ao desnorte que reina na chamada criação contemporânea…

V.D.: O orçamento para a cultura está longe dos objectivos a que Comunidade se propõe. O que impede um maior investimento – a falta de vontade política dos dirigentes reflecte uma não consciencialização da importância do sector cultural?
V.G.M.: Creio que o Conselho acabará por impor, não mais, mas menos dinheiro para a cultura. Os nórdicos, mais os holandeses e ingleses têm precedentes nessa atitude. Não há nem vontade política, pelo menos da parte dele, nem consciência de que, para a Europa ser outra coisa, teria de passar pela cultura. E quando o Conselho encostar o Parlamento à parede, as redes de agentes e operadores culturais vão começar a gritar aqui d’el rei, que temos de aceitar o que nos quiserem dar, se não, ficam eles sem trabalho.

V.D.: O sentimento de identidade europeia enquanto “matriz de civilização e referência espiritual” (suas palavras) poderá estar condenado ao papel de uma bela adormecida caso não se empreendam acções que permitam aos europeus conhecerem-se uns aos outros nesta União alargada?
V.G.M.: Penso exactamente isso mesmo.


V.D.: Fora do patamar institucional, como vê o papel das redes e das fundações culturais para a promoção da cooperação cultural internacional na Europa?
V.G.M.: Receio que tudo isso se torne uma espécie de rede sindical profissionalizada, com prejuízo para a cultura. De resto, os grandes tendem a ficar com a parte do leão, em prejuízo dos mais pequenos.

V.D.: Dada a evolução do papel da Comunidade no sector cultural europeu, sobretudo desde a década de 1970 até ao presente, quais foram, a seu ver, os marcos de maior êxito alcançados?…
V.G.M.: Não acompanhei as coisas desde o princípio. Mas creio que as orquestras europeias e as capitais europeias da cultura, pelo menos no seu potencial, são coisas interessantes. Idem, quanto aos programas de apoio à tradução.

V.D.: E quais são as áreas, enquadráveis no âmbito de uma política cultural, mais carentes de intervenção comunitária? (A valorização da diversidade linguística?)
V.G.M.: A noção de património, sua defesa e valorização, nas mais variadas áreas, acaba por acarretar a da diversidade linguística e das identidades específicas. O que nos precede explica-nos. Por isso temos de o conhecer melhor.


* Sempre activo nos mais diversos debates, Vasco Graça Moura referia-se ao diálogo entre o historiador de arte Jean Clair e o filósofo Régis Debray, intitulado “Questions sur l’art, aujourd’hui” e publicado pelo jornal Figaro nessa data (14 de Novembro de 2005). No mesmo dia, numa mensagem posterior a esta entrevista, contextualizou-me sobre a questão de fundo publicada no Figaro e sobre a qual ele próprio já tinha vindo a discorrer nos meses anteriores:
«Quanto à entrevista do Figaro: o importante é, e eu também tenho escrito sobre isso, nomeadamente uma série, aqui há uns meses, no diário de notícias, sob o título “Subvenção e subversão” que, na Europa de influência francesa o papel do estado está a ser o de sustentar uma vasta camada parasitária que invoca a genialidade em causa própria.Quando, aqui no PE, se fala em apoiar a inovação e a criação contemporânea, está-se a abrir a porta a isso, e aí é que a Comissão não tem qualquer hipótese de controlar a qualidade daquilo que apoia… É o que me preocupa, sem contar que os meios são escassos e que a actualização da herança cultural, em muitas áreas (literatura, teatro, música, etc.) torna possível a entrada da contemporaneidade, mas para dar valor à importância de uma matriz comum que nos explica enquanto europeus. Não tenho nada contra as experiências ditas inovadoras ou vanguardistas na criação artística. Mas acho que, se for a Europa a apoiá-las, os desequilíbrios serão ainda maiores e os resultados ainda mais problemáticos. É como na sublimação: ao querer-se que os contemporâneos comuniquem o que fazem sem haver conhecimento recíproco daquilo que está para trás e respeita a todos, está-se a passar do estado sólido ao gasoso, sem passar pelo intermédio…».Poeta, tradutor, romancista,dramaturgo, cronista, ensaísta, antologiador, advogado, político e ainda gestor cultural, Vasco Graça Moura foi justamente descrito por vários amigos – como o ensaísta Eduardo Lourenço ou o presidente da Gulbenkian Artur Santos Silva – como um intelectual renascentista. O seu entendimento dos bens culturais vai de encontro a esta forma de estar na vida, marcadamente humanista. Em mais uma mensagem com que me presenteou (pois foi assim que me senti, presenteada, com a generosa atenção que me dedicou), definiu-os assim:

«(…) os bens culturais, tanto materiais como imateriais” têm “um valor quantitativo em si, e que o é também de humanismo, de factor de identificação colectiva e de enriquecimento da personalidade individual, sem os quais não se tornam possíveis nem o conhecimento recíproco dos cidadãos da União, nem a construção da Europa, nem a plena cidadania europeia.»

É premente e ainda não se alcançou este patamar de entendimento dos bens culturais ao nível da UE, que tem vindo a aprofundar as suas fissuras em consequência das falhas da monetária união. A Europa, em pleno e constante processo de construção, terá que fortificar os seus pilares com o cimento das raízes de uma identidade cada vez mais fugidia. O seu resgate terá que se socorrer desse humanismo que Vasco Graça Moura tão bem defendeu e que mora em cada melodia, texto, imagem e edifício que compõem a grande sinfonia europeia. Duas frases de Vasco Graça Moura sintetizam esta missão, que também foi sua: “o que nos precede, explica-nos. Por isso temos de o conhecer melhor”.

Vera Dantas