Da viagem mental à viagem do desassossego
Entre o real e o imaginário, há espaço para mais do que apenas a viagem, há dois tipos de jornada: a viagem que se fez, que é a concreta, e a viagem que são se fez, a mental, como a que Gonçalo M. Tavares escreveu em “Uma Viagem à Índia”, ao contrário da que fez e contou em “Canções Mexicanas”.
A viagem do escritor ao México marcou-o particularmente, porque gosta de entrar num sítio que desassossegue a nossa lógica. E isso acontece na cidade do México, pela velocidade de surpresa dos acontecimentos e pelo perigo que lhe é inerente, contrastantes com a nossa previsibilidade europeia e transmissores de uma tensão constante. Foi nessa malha urbana que o escritor se deparou com um cenário para nós inusitado: uma gelataria, um exíguo espaço de 4 m2, era também o local de reza de duas senhoras, imergidas na sua meditação. E o que é fascinante no México é esta mistura.
Por outro lado, uma viagem física concreta permite percebermos bem a nossa casa, o sítio onde vivemos. Por exemplo, em Marraquexe, existem apenas dois espaços: o privado, que é a casa (o local seguro, “da mãe”), e o público, a rua, completamente densa. Uma densidade concentrada na praça principal da cidade, em que o trânsito tem múltiplas direcções e podemos ser atropelados em qualquer ângulo! Ao chegar a Lisboa, esperar pelo semáforo e parar no passeio, Gonçalo percebeu o que este realmente significa: é um espaço intermédio entre a casa da mãe e o local de perigo.
A viagem antes e depois da imagem
O que mais nos influencia para dar origem a sensações, boas ou desagradáveis, tem a ver com imagens. Muitas das nossas viagens são para encontrarmos imagens que já vimos: A viagem antes da foto é uma e, depois da foto, outra. Parece que vamos confirmar se algo (como a Torre Eiffel) está mesmo lá e muitas vezes ficamos com a sensação de que não está tão bem como na foto…
Antes a viagem tinha a ver com algo que nunca tínhamos visto. A imagem está a mudar isso e as pessoas viajam para encontrar uma imagem que já viram, embora
as viagens mais fascinantes sejam aquelas em que vemos coisas novas.
Viajar torna um escritor melhor?
Os melhores escritores não são necessariamente os mais viajados. Basta pensarmos em Fernando Pessoa, que dizia não ter tão pouca imaginação que precisasse de viajar. Na verdade, a viagem tem a ver com o sítio onde está a nossa atenção.
A tecnologia mudou a noção de presença da pessoa e mostrou algo muito importante para a viagem: nós estamos não onde estão os nossos pés mas onde está a nossa atenção. Houve um percurso de alteração da posição de atenção. Escrever é mudar o ponto onde a pessoa está. Ver pode inibir a potência do imaginário. A imaginação resulta de algo não totalmente definido e claro.
E é por isso que dizer mais é muitas vezes tirar a possibilidade de as pessoas criarem imagens. O imaginário entra quando há espaços por preencher e a pessoa se posiciona dentro deles.
A imaginação tem a ver com uma espécie de treino exaustivo da permanência de uma certa ignorância, com dizer com uma certa violência que não se quer saber mais sobre algo.
Homens iguais, leis diferentes
Há algo muito forte quando se viaja: por um lado, os homens são muito semelhantes, por outro as leis são muito diferentes. E as leis europeias são provavelmente aquelas com que o autor mais se identifica, pelo que exportar os direitos humanos lhe parece um bom projecto para portugueses, franceses, italianos e outros europeus.
O saque em nome da religião
Muitas vezes aquilo que aparenta ser uma convicção religiosa é uma absoluta convicção económica. São grandes transferências de riqueza, às quais podemos dar os nomes mais nobres, mas é de saquear que se trata. Debaixo dos grandes itinerários do nosso livro religioso está uma transferência monetária e não tanto a vontade de difundir a religião.
Peregrinação ou desvio?
A viagem é o oposto da peregrinação religiosa, que tem um itinerário e um destino. O escritor Jack Kerouac, da geração beat, defendia o oposto, numa espécie de elogio infinito de desvio, numa liberdade muito própria dos anos 1960 e 1970.
A decisão de continuar a ver o mesmo é de certo modo sensata, de maturidade. Mas se evocarmos o poeta Allen Ginsberg, a viagem é uma espécie de jazz urbanístico.
Nota da autora: Escrevi este texto a partir das intervenções de Gonçalo M. Tavares a 6 de Setembro de 2014 numa palestra sobre “A Viagem: do Mundo à Cidade”, na Feira do Livro do Porto. Agrupei as ideas expressas pelo escritor em temáticas para uma mais fácil leitura.